Rui Cardoso Martins

Rui Cardoso Martins

Rui Cardoso Martins (Portalegre, 1967) é romancista, argumentista e cronista. É autor dos romances E Se Eu Gostasse Muito de Morrer (2006, traduzido em inglês, espanhol, francês, húngaro e russo), Deixem Passar o Homem Invisível (2009, Grande Prémio de Romance e Novela APE), Se Fosse Fácil Era Para os Outros (2012) e O Osso da Borboleta (2014), e das colectâneas de crónicas Levante-se o Réu (2015, Grande Prémio de Crónica APE). Também do livro Passagem pelo Vazio e Outros Contos (2022). 

Tem livros e contos traduzidos em diversas línguas. Repórter fundador do diário Público e cronista da TSF e JN. Autor de cinema, televisão e teatro, com destaque para o argumento original d' A Herdade (2019, co-autoria, com Tiago Guedes), candidato ao Leão de Ouro e Melhor Argumento no Festival de Veneza, da peça Última Hora, no Teatro Nacional D. Maria II, e da série Causa Própria (com Edgar Medina), RTP. Co-autor, com Fernando Vendrell, do argumento de Sombras Brancas (2023). Trabalhou no argumento e guião do díptico Mal Viver/Viver Mal, de João Canijo, Urso de Prata do Festival Internacional de Berlim, Berlinale de 2023. Premio Sophia 2023 da Academia Portuguesa de Cinema à Melhor Série por Causa Própria (co-autoria, com Edgar Medina). 

É professor universitário de Arte da Crónica e de Argumento de Cinema e Televisão.

Obra publicada com Filigrana Editora


PASSAGEM PELO VAZIO E OUTROS CONTOS

Seu Título

Se o passado do conto é pré-histórico, muitas vezes é o passado vital do escritor que alimenta cada texto. Isto é, a mistura da história geral da literatura e da formação individual – desastres, alegrias, medos, amores – daqueles que se aventuram nas cavernas do conto. 

E por isso quero mostrar gratidão aos que nas cavernas entraram primeiro e melhor do que eu. Em particular, e assim de cabeça, obrigado a Ernest Hemingway e aos seus poderosos Contos de Nick Adams – A Luz do Mundo, Os Assassinos; obrigado a Raymond Carver e à sua comovente e cega Catedral; obrigado a John Cheever e ao ridículo e terrível O Nadador, obrigado a Nicolai Gógol e aos ferozes e abismais O Nariz e O Capote, obrigado ao desconcertante Andrei Platónov, em particular a O Feroz e Magnífico Mundo e a esta sua frase, do romance A Escavação, que me ficou na cabeça: "Já viveste muitos anos, podes trabalhar só com a memória". 

Obrigado aos que só agora li e que me enlearam retrospectivamente, como é o caso de O Homem da Esquina Rosada, em que o jovem Jorge Luis Borges se mostra um verdadeiro naifista, e não só literário. 

Quanto às minhas tentativas, a maior parte está nesta  Passagem Pelo Vazio e Outros Contos. Não há maneira de evitar dizer-vos que alguns dos contos são contemporâneos de tragédias pessoais. Descobri também, com certa surpresa, que juntos parecem um corpo, quase uma unidade, como uma carcaça retalhada que, retiradas cada uma das peças penduradas nos ganchos, é quase possível reconstruir por inteiro num balcão de talhante (talvez só um pé a mais, uma orelha a menos). É provável que se encontrem pedaços de solidão e de revolta – assim se escreve – mas também de humor. A chamada vida.